Desconstruindo Mitos sobre a Cannabis no Brasil.

Em 08 de junho de 2021, a Comissão Especial da Câmara[1] aprovou o Projeto de Lei 399/2015 (PL 399/15), cujo propósito é autorizar o cultivo de cannabis no Brasil para fins terapêuticos, abrangendo tratamentos para doenças como esclerose múltipla, Alzheimer, Parkinson e epilepsia, bem como permitir seu uso veterinário e industrial.
Inicialmente, o mencionado projeto propõe alterações ao artigo 2º da Lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2006[2], conhecida como Lei de Drogas, com o objetivo de viabilizar a comercialização de medicamentos contendo extratos, substratos ou partes da planta cannabis sativa em sua composição[3]. O debate em torno da legalização do cultivo de cannabis sativa para fins medicinais no Brasil tem gerado intensos debates. Nesse contexto, representantes de associações e pesquisadores têm defendido a legalização, especialmente durante uma audiência ocorrida na Comissão de Direitos Humanos, Minorias e Igualdade Racial da Câmara dos Deputados em 29 de junho de 2023.

O debate sobre a legalização do cultivo de cannabis sativa para fins medicinais no Brasil tem gerado discussões acaloradas. Nesse contexto, representantes de associações e pesquisadores têm defendido a legalização, especialmente durante uma audiência realizada na Comissão de Direitos Humanos, Minorias e Igualdade Racial da Câmara dos Deputados em 29 de junho de 2023. 

É importante ressaltar que a legalização de substâncias controladas, como as derivadas da cannabis, deve ser fundamentada em uma análise detalhada dos impactos sociais, especialmente no que diz respeito à proteção à saúde pública, em conformidade com o princípio constitucional da proteção à saúde (artigos 196 a 200 da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 – CRFB/88). Ao analisar os artigos 196 e ss da CRFB/88, Gilmar Ferreira Mendes considera que o Estado tem o dever de implementar políticas públicas que visem não apenas o tratamento de doenças, mas também a proteção integral da saúde dos cidadãos. Essas políticas públicas buscam reduzir o risco de doenças e outros agravos, envolvendo medidas de dimensão individual e coletiva[4].A Câmara dos Deputados, ao analisar o projeto, deve estar ciente do seu dever constitucional de proteção integral da saúde pública, mesmo ao propor medidas que visem o avanço nos tratamentos de doenças no Brasil.
A audiência pública ocorrida em 29 de junho de 2023 foi marcada pela defesa apaixonada da legalização da cannabis sativa para uso medicinal por parte de representantes de associações e pesquisadores[5]. No entanto, é importante observar que essa exposição não foi acompanhada do embasamento técnico-científico esperado. É relevante ressaltar que, embora tais manifestações estejam protegidas pela liberdade constitucional de expressão, o contexto da audiência pública impõe limites em prol do interesse público[6].
No que diz respeito ao assunto, observamos que a Câmara dos Deputados parece ignorar a existência da autoridade competente para analisar a problemática em questão, que é a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), responsável por um extenso controle de segurança e eficácia dos produtos à base de cannabis. A descentralização administrativa e a atribuição do dever de fiscalização da saúde a essa autarquia especial são de particular importância, pois isso separa a saúde pública do debate predominantemente político, que muitas vezes é permeado por falhas técnicas, erros e narrativas que não servem ao interesse público, ao contrário do que ocorre no âmbito das agências reguladoras[7].
Vale ressaltar que as agências reguladoras são orientadas pelo Princípio da Regulação, pelo qual o Estado, antes provedor, reduz sua atuação direta nos serviços públicos por meio de colaboração com o setor privado. Nesse contexto, com o objetivo de proteger os interesses dos cidadãos regulados, o Estado Regulador passa a controlar, fiscalizar e normatizar a prestação dos serviços públicos delegados pelos atos administrativos regulatórios emitidos pelos órgãos de regulação[8].

Diferente do que se aponta como “irracionalidade regulatória”, com o devido acato, o que faz a ANVISA é seguir protocolos de discussão de tomadas de decisão

A atividade de controle e, principalmente, fiscalização é intrínseca à competência das agências reguladoras de forma geral. Mais especificamente, no caso em questão, é a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) a autoridade competente para controlar, fiscalizar e normatizar o tema em discussão, especialmente diante da incapacidade, sobretudo do Poder Legislativo, em lidar com a matéria de maneira eficaz.
O Professor Luiz Guilherme Marinoni, ao examinar a doutrina de Direito Regulatório de Guido Calabresi, alerta que os legisladores frequentemente se precipitam em sua atividade constitucional ou agem sem ponderar devidamente sobre os direitos fundamentais, seja em momentos de crise ou simplesmente devido à pressão do tempo[9]. O surgimento de uma proposta legislativa precipitada e desprovida da cautela exigida pelo tema pode, em última análise, negligenciar e, de fato, violar os direitos fundamentais de proteção integral à saúde pública. Daí decorre a máxima de que o rápido crescimento do mercado não suplanta a necessidade de uma regulação eficaz da circulação de produtos psicotrópicos.
Não se pode ignorar que a regulamentação do cultivo de cannabis no Brasil por meio de lei, mesmo com o propósito de avançar no tratamento de doenças, aparenta carecer dos critérios técnicos há muito monitorados pela ANVISA. A Resolução da Diretoria Colegiada n. 327 de dezembro de 2019 – RDC 327/19, por exemplo, estabelece os requisitos técnicos e administrativos para o registro e monitoramento de medicamentos à base de cannabis no país, assim como os procedimentos para sua prescrição. Essa regulamentação oferece uma estrutura clara para a utilização e controle de produtos à base de cannabis para fins medicinais, em consonância com os princípios de segurança e eficácia.[10]. Contrariamente, o projeto de lei em discussão parece não fornecer aos cidadãos os mesmos critérios, pois sua justificativa e os debates associados não revelam o mesmo rigor mantido pela ANVISA.
A Resolução da Diretoria Colegiada n. 660 de março de 2020 complementa a regulamentação da cannabis medicinal, tratando de procedimentos simplificados para a concessão de autorização de funcionamento às empresas do setor e estabelecendo critérios para a importação excepcional de produtos. Tal regulamentação busca facilitar e garantir um acesso mais seguro aos produtos de cannabis medicinal no Brasil, especialmente quando respaldado por documentação e estudos apropriados[11].
Nos debates acerca do PL 399/15, negligenciam-se os imperativos da precaução e da proteção à saúde, que exigem, no âmbito do controle dos atos administrativos, critérios científicos para a implementação de mudanças significativas na política de fiscalização do uso de substâncias controladas. É evidente que a falta de critérios técnicos levanta sérios questionamentos relacionados à segurança pública, uma problemática que não se dissipa apenas com a publicação de alterações legislativas, destacando-se que estas estão desacompanhadas de mínimos planos de implementação e fiscalização.
Observa-se que o texto do PL 399/15 não faz qualquer menção à atividade regulatória, nem mesmo para orientar a ANVISA sobre o dever de controle, fiscalização e normatização. O Congresso Nacional, ao tentar lidar com um problema tão sensível, parece não abordar o assunto com o cuidado necessário. Em outras palavras, a regulação do uso de substâncias psicotrópicas não pode ser reduzida a uma simples alteração legislativa na Lei de Drogas, cujo objeto é essencialmente distinto, consistindo na criminalização de condutas associadas ao tráfico de entorpecentes de forma ampla.
Em contrapartida, a regulamentação detalhada da RDC 327/2019 estabelece os procedimentos específicos para o registro de produtos à base de cannabis, contemplando requisitos de qualidade, documentação necessária e etapas do processo de registro.[12].
O mesmo critério é observado na RDC 660/2020, a qual define de forma clara os procedimentos simplificados para a concessão de autorização de funcionamento de empresas que manipulam a cannabis medicinal e os requisitos para a importação excepcional de produtos à base de cannabis. Tais regulamentações permitem que empresas e profissionais de saúde exerçam suas atividades de forma segura e eficaz [13], aspectos que não são considerados nos debates relacionados ao PL 399/15.
Uma crítica especial é direcionada à afirmação do presidente da Associação Nacional do Cânhamo Industrial, Rafael Arcuri, sobre a “irracionalidade regulatória” em relação à cannabis medicinal no Brasil. Ele considera que “Podemos importar de diferentes formas, podemos produzir, vender; temos uma indústria se estabelecendo, um comércio cada vez mais forte, que cresce 100% ao ano, de cannabis medicinal, mas não temos a possibilidade de produção nacional desses insumos” [14].
Diferentemente do que se aponta como “irracionalidade regulatória”, com o devido acato, o que a ANVISA faz é seguir protocolos de discussão e tomadas de decisão. A atuação da referida agência reguladora, por meio das citadas resoluções, preocupa-se em garantir a eficácia e a segurança dos produtos à base de cannabis. A ausência de regulação, ou a promoção de uma lei que autorize de maneira genérica o plantio e o desenvolvimento de medicamentos, pode levar à adoção de tratamentos para diversas enfermidades, enquanto a regulamentação restringe o uso e a dosagem, promovendo, inevitavelmente, eficácia e segurança[15].
Por meio da RDC 327/2019, a ANVISA estabelece os procedimentos específicos para a prescrição de produtos à base de cannabis por profissionais de saúde. Os requisitos detalhados e as diretrizes fornecem um quadro regulatório seguro para garantir que a prescrição dos produtos seja feita de acordo com as melhores práticas médicas. Não obstante, a RDC 660/2020 inclui diretrizes específicas para a importação excepcional de produtos à base de cannabis. Tais medidas proporcionam uma estrutura legal que permite o acesso controlado e seguro a produtos à base de cannabis no Brasil[16].

Conclusão

Portanto, em que pese o crescimento significativo da demanda pela regulamentação do mercado da cannabis no Brasil, ainda que inserido no debate sobre o avanço no tratamento de doenças, não se pode perder de vista que a singeleza de regulamentação do tema, derivada do PL 399/15, ao que tudo indica, minimiza o dever constitucional de proteção à saúde pública. O referido projeto de lei pode, ao final e ao cabo, franquear a livre e indiscriminada circulação, ainda que mediante receita médica, de medicamentos ou fármacos com bases psicoativas, medida que não parece prestigiar o rigoroso trabalho que vem desenvolvendo a Agência Reguladora compete para controle, fiscalização e normatização da atividade.

Por: Vladimir Oliveira
Co.Orientadora: Dra. Luciana M. Nolli

REFERÊNCIAS:

[1] As comissões especiais são criadas com o intuito de elaboração de pareceres sobre propostas de emendas à constituição. Tal medida, encontra fundamento no art. 34 do Regimento Interno da Câmara dos Deputados.

[2] O art. 2º da Lei 11.343/2006 passaria acrescido do § 2º, que teria a seguinte redação: Os medicamentos que contenham extratos, substratos, ou partes da planta denominada Cannabis sativa, ou substâncias canabinoides, poderão ser comercializados no território nacional, desde que exista comprovação de sua eficácia terapêutica, devidamente atestada mediante laudo médico para todos os casos de indicação de seu uso.

[3] Trecho retirado da ementa do PL 399/15. Disponível em https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=947642. Acesso em 02/09/2023.

[4] MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de direito constitucional. Gilmar Ferreira Mendes e Paulo Gustavo Gonet Branco. – 10. Ed. Rev. E atual. – São Paulo: Saraiva, 2015. – (Série IDP), p. 660-662.

[5] Agência Câmara de Notícias. Disponível em https://www.camara.leg.br/noticias/976261-ASSOCIACOES-E-PESQUISADORES-DEFENDEM-LEGALIZACAO-DO-PLANTIO-DE-CANNABIS-PARA-USO-MEDICINAL. Acesso em 02/09/2023.

[6] MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de direito constitucional. Gilmar Ferreira Mendes e Paulo Gustavo Gonet Branco. – 10. Ed. Rev. E atual. – São Paulo: Saraiva, 2015. – (Série IDP), p. 270-274.

[7] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 18ª edição.ed. Malheiros. São Paulo, 1993, p. 307/316.

[8] QUEIROZ, João Eduardo Lopes. O direito administrativo das agências reguladoras / João Eduardo Lopes Queiroz, Márcia Walquiria Batista dos Santos. – Rio de Janeiro : Lumen Juris, 2016, p. 45.

[9] MARINONI, Luiz Guilherme. Técnica decisória e diálogo institucional: decidir menos para deliberar melhor. Suprema: revista de estudos constitucionais, Brasília, v. 2, n. 1, p. 49‑85, jan./jun. 2022, p. 54.

[10] RDC 327/2019 – Seção I – Artigos 1º ao 4º.

[11] RDC 660/2020 – Seção I – Artigos 1º ao 3º.

[12] RDC 327/2019 – Seção II – Artigos 5º ao 8º

 

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